quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Dos brinquedos

De todos os brinquedos que a Ana tem - e, acredite, eu neste dois anos e quatro meses só comprei um, mas a criança tem brinquedos e mais brinquedos -, o favorito é uma bonequinha. Uma bonequinha dessas de plástico bem mais-ou-menos, que não senta, não tem membros articulados, não fecha os olhinhos quando deita e nem cabelo o monstrinho tem. Pra piorar, a boneca tem a boca permanentemente aberta, com um "apito": daí, se você aperta, ela grita.

É um mecanismo muito simples. Você aperta a barriga, a cabeça, a boneca dá um grito. E o negócio chega a ser macabro, porque a boneca grita de um jeito que parece mesmo grito, e alto.

Sempre tive uma relação estranha com bonecas. Quer dizer, eu gostava delas, sempre tive e sempre brinquei. Mas eu não sabia brincar. As meninas iam até minha casa, e elas queriam brincar de mamãe e filhinha, esperar o papai chegar, dar o mamá, essas coisas. Eu queria colocar as bonecas todas sentadas e brincar de escolhinha. As bonecas das quais eu não gostava recebiam um nome do qual eu também não gostava, e iam sempre muito mal em tudo - menos em uma matéria qualquer, só pra manter a verosimilhança com o que a gente vê mesmo acontecendo por aí (ninguém é totalmente imprestável). As bonecas de que eu gostava, e certamente uma acima de todas as outras, tinham o nome que eu gostaria de ter, material escolar completo e boas notas.

Brincando de Barbie, era pior ainda. As meninas que brincavam comigo queriam "pentear o cabelo". "Trocar de roupa". Eu ficava me perguntando o que isso deveria significar. Oras, para mim era muito óbvio: as Barbies serviam para contar uma história e, se não tinha roteiro, eu não via objetivo em brincar. Eu queria que Barbie e Ken se amassem, mas então a irmã dela fugia da casa dos pais e aparecia para morar com eles e complicava tudo. Ou então eles tinham uma filha adolescente, e ela estava naquela fase rebelde - eu tinha oito anos, como poderia querer brincar disso? Ou então eles poderiam estar numa fase de dificuldade financeira e todos tinham que se virar. Eu queria aventura! Eu não queria a vida morna que eu realmente queria ter, desde cedo. Sabia que as bonecas não eram eu, e não me projetava nelas. Ou me projetava: os meus maiores anseios e os meus maiores medos, que eu nunca teria coragem de concretizar, viravam enredo. Mas não eu, eu mesma. De eu mesma, já bastava eu.

E cresci cheia dessas coisas. De pensar em como as bonecas são um brinquedo complicado a valer. Para manter as meninas no seu lugar de meninas, promovendo a segregação de gêneros e o machismo, mas ao mesmo tempo sabendo que eu tinha sido capaz de subverter isso, de enxergar um desdobramento que me fez adorar brincar de bonecas por muito tempo, por mais que fosse uma brincadeira quase sempre solitária, torcendo por uma companhia que topasse fazer de conta que o Ken tinha um filho de outro casamento.

E aí, a Clara. A Ana deste blog, que me fez para sempre a Outra, e não porque eu deleguei a ela qualquer protagonia, mas sim porque ela sempre foi protagonista nas nossas vidas, mesmo enquanto era só projeto. Ela ganhou uma boneca. E quando eu vi o presente, um arrepio me percorreu a espinha.

A primeira boneca, perto de seu um ano de idade, era uma verdadeira sinfonia. Era apertar a barriga e ela começava a cantar, três músicas inteiras - para deleite do bebê e desespero de mamãe. Ainda hoje, às vezes, levanto de madrugada para beber água e piso nessa boneca (que agora, já meio "sem voz" pela ação do tempo nas suas baterias, canta vagarosamente e desafinadamente, com um toque de filme de terror, na calada da noite. As.três.músicas). Mas eu não sei o que senti quando ela chegou. Eu fiquei em pânico. Eu pensei algo como "Deus, eu não aprendi a brincar de bonecas até hoje! Como serei capaz de ensiná-la?".

Vieram outras bonecas e certamente virão mais. Clara tira a roupa e põe a roupa delas, troca a fralda (agora põe no troninho), põe pra dormir ninando, faz acordar e dá de mamar. Não com mamadeira, mas do jeito que ela mamou, ora bolas, no peito. Sai andando pela casa, com a boneca pendura a tira colo, a roupa levantada, e me explica quando eu olho: "ela tá mamando. No peto meu".

E a boneca que grita. A boneca, sem nome, para nós é a "boneca que grita" ou, "o neném que grita", no melhor dos casos. Clara, com um aninho e pouco, imitava fielmente. Alguém apertava a barriga da boneca, dá-lhe um grito ali e outro acolá, a neném de verdade gritando também, no mesmo tempo, e depois rindo a valer da nossa cara perplexa. Se deleitando - mas eu disse que ela nasceu decidida à protagonia.

E fomos levando, como disse o Chico, isso tudo a nos levar. E então eu reparei nestes tempos na Clara e nas bonecas. Que ela abraça e beija, e brinca de roda - pois nos faltam mais crianças para rodar com ela. E lhes sopra ao pé do ouvido, como eu lhe sopro: "te amo". E sei dos gêneros, e do machismo, e da coisa toda, mas quando estou otimista, assim, que nem hoje, eu olho para Clara e não a vejo ensaiando um papel de sociedade, de mãe e de cuidadora. Eu a vejo ensaiando o amor. E este ensaio é bom que só.